IX
O MAU VIDRACEIRO
Há certas naturezas puramente
contemplativas e de todo impróprias à ação, que, entretanto, sob um impulso
misterioso e desconhecido, agem às vezes com uma rapidez da qual não
acreditavam que fossem capazes.
Tal como alguém que, temendo encontrar com seu porteiro uma novidade triste,
perambula, covardemente, diante da porta sem ousar entrar, ou, então, que
conserva por quinze dias uma carta sem abrir, ou o que só se resigna, após seis
meses, a tomar uma decisão que já era necessária há um ano, se sente, bruscamente,
precipitado a agir por uma força irresistível como a flecha em um arco
distendido. O moralista e o médico, que pretendem saber tudo, não podem
explicar de onde vem tão subitamente uma tão louca energia a essas almas
preguiçosas e voluptuosas e, como incapazes de realizar as coisas mais simples
e as mais necessárias, acham em certo minuto uma luxuosa coragem para executar
os atos mais absurdos e, freqüentemente, mais perigosos.
Um de meus amigos, o mais impulsivo sonhador que já existiu, pôs uma vez fogo
em uma floresta para ver, dizia ele, se a fogo alastrava-se tão facilmente coma
se afirma geralmente. Dez vezes seguidas a experiência falhou, mas, na décima
primeira, resultou um sucesso.
Um outro acendeu um charuto ao lado de um barril de pólvora, “para ver, para
saber, para tentar o destino, para se constranger a fazer prova de energia,
para bancar a jogador, para conhecer os prazeres da ansiedade, por nada, por
capricho, por ociosidade”.
É uma espécie de energia que salta do tédio e do devaneio; e aqueles que têm
tais manifestações são, em geral, como eu disse, os mais indolentes e os mais
sonhadores dos seres.
Um outro tímido, desses que baixam os olhos diante do olhar dos outros homens,
a tal ponto que precisa reunir toda a força de sua pobre vontade para entrar
num café ou passar na frente do guichê de um teatro onde os controladores lhe
parecem investidos da majestade de Minas, de Éaco e de Radamante, saltará,
bruscamente, ao pescoço de um velho que passa a seu lado e o beijará com
entusiasmo diante da multidão atônita.
Por quê? Porque... essa fisionomia era-lhe irresistivelmente simpática? Talvez;
porém é mais legítimo supor que ele mesmo não saiba por quê.
Eu fui mais de uma vez vítima dessas crises e desses surtos que nos autorizam a
crer que demônios maliciosos deslizam em nós e nos fazem executar, sem nosso
conhecimento, suas mais absurdas vontades.
Uma manhã levantei-me aborrecido, triste, fatigado de ociosidade, preguiçoso e
disposto, parecia-me, a fazer qualquer coisa de grande, uma ação de brilho...
e, então, abri a janela!
(Observem, peço-lhes, que o espírito de mistificação que, em algumas pessoas,
não é o resultado de um trabalho, de uma combinação, mas de uma inspiração
fortuita, participa muito, quanto mais não seja pelo ardor do desejo, desse
humor, histérico segundo os médicos, satânico segundo aqueles que pensam um
pouco melhor que os médicos, que nos impele, sem resistência, para uma porção
de ações perigosas ou inconvenientes.)
A primeira pessoa que percebi na rua foi um vidraceiro, cujo grito agudo,
desafinado, subia até mim, atravessando a atmosfera parisiense, pesada e suja.
Ser-me-ia, além disso, impossível dizer por que eu tive a atenção chamada para
esse pobre homem. Tomei-me de uma raiva tão súbita quanto despótica.
“Hei! Hei!”, gritei, para que subisse. Enquanto eu refletia, não sem alguma
alegria, que o quarto ficando no sexto andar e sendo a escada muito estreita, o
homem teria algum trabalho na sua ascensão e, certamente, engataria em alguns
lugares sua frágil mercadoria.
Enfim ele apareceu e eu lhe disse: “Como, o senhor não tem vidro de cores?
Vidros rosas, vermelhos, azuis, vidros mágicos, vidros do paraíso? Impudente é
o que o senhor é! E o senhor ousa passear por quarteirões pobres e não tem nem
mesmo vidros que façam ver que a vida é bela!” E eu o empurrei em direção à
escada, na qual ele tropeçou, resmungando.
Aproximei-me do balcão e tomei um pequeno vaso de flores, e quando o homem
reapareceu ao abrir a porta eu deixei cair, perpendicularmente, meu engenho de
guerra sobre o rebordo posterior de seus ganchos, e, como o choque o derrubou,
ele acabou de quebrar sob seu dorso toda a sua pobre fortuna ambulatória que
resultou na fragorosa barulheira de um palácio de cristal destruído por um
raio.
E, ébrio de minha loucura, gritei para ele, furiosamente: “A vida é bela! A
vida é bela!”
Essas brincadeiras nervosas não são sem perigo e pode-se, às vezes, pagá-las
caro. Mas o que importa a eternidade da danação a quem achou em um segundo o
infinito da alegria.

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