Publi #3 - A Falência ( Júlia Lopes de Almeida)



A Falência
Júlia Lopes de Almeida
Penguin Classics Companhia das Letras, 2019.
Classificação: ★★★★★❤


   
Júlia Lopes de Almeida, nascida no Rio de Janeiro, em 1862 e filha de imigrantes portugueses, teve acesso a uma educação de qualidade e moderna para os padrões da época e o incentivo dos pais para a escrita. Considerada a principal figura feminina entre os escritores do seu tempo, conquistou seu espaço na produção literária em um cenário em que à mulher não era permitido escrever e nem expressar/discutir suas ideias. Neste período, as mulheres eram excluídas pelo preconceito e pelos limites que deveriam ocupar na sociedade de outrora, ou seja, estavam direcionadas para a vida privada no que diz respeito às atividades domésticas, cuidados com a casa, marido e filhos. 
  O livro A Falência (1901) discorre sobre um espectro de ampla abordagem, o que enriquece a obra, englobando os aspectos históricos, observação dos costumes da época, crítica social e critica à representação do papel da mulher na sociedade patriarcal. A ação do romance transcorre em 1891, e Júlia retrata um período conturbado de crise política e econômica no Brasil, além de retratar a sociedade da sua época, tanto a alta sociedade burguesa carioca, como também as vicissitudes dos pobres e marginalizados, dos negros recém saídos da escravidão, principalmente, a transição do trabalhador escravo para o trabalhador livre.      
  A narrativa se passa nos primeiros anos da instauração do regime republicano no Brasil. Corria, então, o ano de 1891, período em que o preço do café assumiria proporções extraordinárias, a comercialização do café estava em alta, uma época de grandes especulações financeiras na Bolsa de Valores, período que ficou conhecido como Encilhamento.

Encilhamento, primeiro plano econômico da República e lançou o Brasil numa grave crise econômica que quebrou muitos investidores.* Fonte 

 A história gira em torno da família de Francisco Teodoro, sendo este um imigrante português, de origem humilde, que desembarca no Brasil com o intuito de trabalhar. Sem aproveitar a mocidade, possuía ganância no dinheiro e o seu objetivo era acumular riquezas.  

Desde simples caixeiro, quase analfabeto (...) Tinha fresco na memória o dia do desembarque e de como depois rolara aos pontapés, malvestido, mal alimentado. (...) o som do dinheiro era música; viera para o ganhar, atirou-se ao seu destino, tolerando todas as opressões, dobrando-se a todas as exigências brutais, numa resignação de cachorro. (p. 36).

Assim correram anos, dormindo em esteiras infectas, molhando de lágrimas o travesseiro sem fronha. (...) Vinha de longe a sua paixão pelo dinheiro. Todo o seu tempo, toda a sua vida tinham sido consagrados ao negócio. O negócio era o seu sonho de noite, a sua esperança de dia, o ideal a que atirava sua alma de adolescente e de moço. Não pudera ser menino, não soubera ser moço, dera-se todo à deusa da fortuna, sem perceber que lhe sacrificava a melhor parte da vida. (p. 37).

      Francisco Teodoro batalha duramente no decorrer de sua vida e prospera como comerciante e exportador de café na região central do Rio de Janeiro. Casa-se por necessidade de construir uma família, para quem possa deixar suas riquezas como herança, e no intuito de que seus descendentes pudessem dar continuidade aos negócios em nome da família. "Para que lhe serviria o que juntara, se o não compartilhasse com uma esposa e meia dúzia de filhos que lhe herdassem virtudes e haveres?."
        Dentro de um contexto urbano, a autora, no decorrer da narrativa, nos revela os conflitos da sociedade através da cidade. Dessa forma, conhecemos a dinâmica do comércio, o perfil dos trabalhadores, a diferença de classes sociais, de modo geral; e a representação das mulheres em diferentes estratos sociais, numa análise mais específica. Nos revela a pobreza e a desordem dos  subúrbios da cidade do Rio de Janeiro, a partir dos olhares de seus personagens; os preconceitos pela diferença de classe, gênero e de raça, construindo um notável panorama da sociedade do Rio de Janeiro da época com severas críticas. É interessante notar que as descrições dos espaços urbanos são feitos a partir dos olhares dos personagens e, por meio desses olhares, os leitores irão identificar os contrastes dos diferentes espaços, as modificações das paisagens das regiões mais carentes em comparação ao mundo burguês, bem como os seus costumes.  

Era sempre nessas ruas de gente miúda, miserável mesmo...
(...) becos sórdido, marinhando pelo morro; casas acavaladas, de paredes sujas; janelas onde não acenava a graça de uma cortina nem aparecia um busto de mulher; caras preocupadas, grossos troncos arfantes de homens de grande musculatura, e ruído brutal de veículos pesadões faziam daquele canto da sua cidade, uma cidade alheia, infernal, preocupada bestialmente pelo pão. (p. 80)

Pareceu ao médico que a atmosfera ali era mais fria, de uma umidade penetrante, cheirando velhice. (...) Mal concebia que se pudesse dormir e amar naquele canto da cidade, mais propício às minhocas do que à espécie humana. (p. 84)

Continuando o caminho, via de um lado e de outro casas desconfiadas, corredores soturnos, escadas escorregadias, que faziam lembrar o mistério e o crime. (...) Tinha a impressão de atravessar por meio de ruínas. (...) Era o resto de uma cidade, tomada de assalto por gente expatriada, resignada a tudo: ao pão duro e à sombra de qualquer telha barata. Uma pobreza avarenta aquela, que formigava por toda a encosta de lajedos brutos, entre ratazanas e águas servidas. (p. 85) 

A autora também retrata, por meio dos personagens, a condição feminina naquela época, além de possibilitar discussões sobre o feminicídio. 

A vida foi feita para as mulheres. E ainda se queixam! Só se fala por aí em emancipação e outras patralhas.. A mulher nasceu para mãe de família. O lar é o seu altar; deslocada dele não vale nada!

Minha senhora, eu sou da opinião de que a mulher nasceu para mãe de família. Crie os seus filhos, seja fiel ao seu marido, dirija bem sua casa, e terá cumprido a sua missão. Este foi sempre o meu juízo, e não me dei mal com ele, não quis casar com mulher sabichona. É nas medíocres que se encontra as esposas. (p. 111) 

Esta ideia trouxe a lembrança da mãe, morta a facada pelo pai, como adúltera. (p. 164)

 No trecho seguinte, a autora nos chama a atenção ao apontar as diferenças das representações do corpo feminino burguês, de atrativos corporais delicados, em contraste com as mulheres de classe mais baixa, em que o corpo se deforma com a necessidade do trabalho, revelando as estratificações sociais. 

E tudo nela repugnava a Ruth: a estupidez, a humildade, a cor, a forma, o cheiro; mas percebera que também ali havia uma alma e sofrimento, e então, com lágrimas nos olhos, perguntava a Deus, ao grande Pai, por que a criara, a ela, tão branca e tão bonita, e fizera com o mesmo sopro aquele corpo feio da Sancha imunda? (p.200)

      Dentro desta perspectiva da temática sobre mulher, o texto nos proporciona reflexões acerca das dificuldades que as mulheres solteiras possuíam para se susterem sozinhas, sendo a maioria delas financeiramente dependentes do marido e com poucas chances de emancipação profissional e financeira. Outros temas são abordados, tais como os aspectos da mundo da vida pública e do trabalho pertencerem ao universo masculino, enquanto que, a vida privada se constitui como elemento feminino. A autora desenvolve  características marcantes, tanto dos personagens principais, como os coadjuvantes. 
     Por fim, convém mencionar que a narrativa enfoca a crise financeira que atinge a família de Francisco Teodoro e, a partir disso, a história prende o leitor numa rede de inquietudes quanto aos destinos dos personagens. 
      
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     A Falência
Autora: Júlia Lopes de Almeida
Prefácio: Luiz Ruffato
ISBN-10: 8582850867
Ed:
Ano: 2019
Páginas: 297
Dimensões: 19,8 x 12,6 x 1,4 cm
Disponível em https://amzn.to/2XqthpM

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